domingo, 22 de agosto de 2010

E como não dormi... poesia!


Quando uma pessoa vive de verdade, todos os outros também vivem!


Biografia Secreta


Quando eu era menina,

Meus sapatos nunca serviam;

Bolhas de um rosa vivo nos calcanhares.

Não me lembro: será que meus sapatos

eram muito apertados

ou eram grandes demais?


Com o chapéu nas mãos, os coitados dos meus pais

perguntavam ao médico: "Tudo certo com ela?"

"Problemas com os pés", dizia o médico.

"O defeito é grave".

E assim meus pais gastavam seu dinheirinho

em sapatos reforçados

para os pés defeituosos.O médico ameaçava:

"Ela nunca mais pode andar descalça!"


Nos sapatos de chumbo, eu acidentalmente atingia

o lado de dentro dos tornozelos

ao correr ou andar -

os sapatos faziam meus joelhos baterem um no outro,

com os ossos estalando, os tornozelos sangrando.

Mas sem aqueles sapatos, sem nenhum sapato,

os cachorros e eu corríamos como o vento.


Toda criança tem uma vida secreta

longe dos adultos.

E assim, no verão ou na neve,

não fazia diferença, eu escapulia

para uma das verdes salas do trono

na floresta, e lá eu desatava

os mil cordões dos sapatos de ferro,

fazia força para abrir os canos altos e duros,

e arrancava aqueles sapatos de deuzentos quilos

que poderiam atingir e matar uma mula.

E então eu só ficava ali sentada,

uma menininha cantando alto lá-lá-lá

enquanto meus pés balançavam descalços, a escutar.


Forçada de volta

àqueles sapatos ano após ano,

foi então que comecei a planejar

amputar meus pés

só para ver o médico desmaiar,

só para refletir sua visão brutal

de como deveriam ser pés "sem defeito".

"Não andará direito pelo resto da vida ", disse ele.

É grave. Muito grave", disse ele.

Uma vez ouvi uma mãe rica

dizer à filha toda arrumadinha

num banheiro público

onde se pagava dez centavos

para usar o sanitário limpo

em vez de sujo:

"Não deixe seus pés se alargarem;

use sapatos o tempo todo,

até quando for dormir...

Não tenha pés comuns",

aconselhou a mãe.

Fiquei cismada... "mas o pé comum é tão...

bem, é tão bom ele ser comum, não é mesmo?"


"Não!Ela não tem arco nenhum", disse o médico...

"É grave. Muito grave", disse ele.

Aqueles sapatos de ferro... para impedir

meu arco de tocar no chão

"... como uma índia de pés chatos", disse ele.

"Mas meus antepassados", murmurei...

"Eu sou uma índia de pés chatos", disse eu.

E mais tarde, já adulta, ao ver

minhas ancestrais

e seus pés de solas gordas,

eu soube que meus pés foram criados

para andar por campos de lavoura,

para cobrir quilômetros na terra batida noe scuro,

para ingerir nutrientes da terra

direto através das solas,

e para andar empertigada, deslizar

e girar na roda da dança.


Mas naquela época, nas chamadas

"boas maneiras do interior",

o spés das mulheres

costumavam ser criados para tornarem-se

pequenos sacrifícios humanos,

mantidos pequenos demais,

não sem peias,

mas, de certo modo, sem pés.

Incapazes de correr

morro acima,

morro abaixo ou

... de fugir.

Revela-se...

que era exatamente esse o objetivo.


Mas meus pés fugiram comigo

neles de qualquer modo.

E hoje, nada de sapatos reforçados

para me fazer "andar direito",

pois com eles ou sem eles, não importa,

eu nunca andei direito;

... até mesmo hoje, seguindo pela rua,

eu dou uma guinada,

de repente querendo ver alguma coisa,

me juntar àquela marcha,

recuperar essa noite,

falar com alguma pessoa ou algum bicho,

fazer um desvio até uma flor que cresce

através das pedras,

abaixar para falar com uma criança

sobre a ocupação importantíssima

de caçar coelhos para obter créditos acadêmicos,

eu só parar e balançar diante de um amado.

Meus pés e pernas pertencem Àquele que Dança

que também possui meus quadris...

e os sapatos corretivos não

corrigiram nada

que fosse mais necessário para minha Alma.

Todos os ritmos mais importantes,

os jeitos de parar e os passos largos

permaneceram "sem conserto".


Agora, acho que os sapatos talvez sejam

uma das minhas formas cruciais de arte.

Espero que por fim seja aceitável

que eu com frequência use

os tipos de sapatos mais descabidos

e às vezes irreverentes

que sejam possíveis. Por favor,

posso ver os pretos

com rosas vermelhas, aqueles

com tiras que se enrolam e se enrolam no tornozelo,

aqueles com laços atrevidos no calcanhar,

minhas botas de motociclista com biqueira de aço

ou os mocassins de camurça que me deixam

sentir até uma simples semente debaixo da sola?

Acho que por fim chegou a hora

- e sem consultar qualquer médico -

em que posso também andar descalça

sempre que possível,

para que possa realmente enxergar e ouvir...


ESTÉS, Clarissa Pinkola. A ciranda das mulheres sábias. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. p.116.

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Roberta Roldão

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